Por Folha Online em 13/10/2020
Repercussão: Folha de São Paulo (impresso)

 

Roberto Alvarez

A pandemia de Covid-19 evidencia a importância da ciência e tecnologia (C&T). Primeiro, porque somente o conhecimento científico permite uma resposta efetiva à crise. Segundo, porque investimentos em grandes projetos de C&T podem ‘construir futuro’. Dedicamos este artigo a explorar esse segundo ponto.

O telescópio Hubble, que completou 30 anos em abril, é um dos instrumentos de maior sucesso da Nasa. Com ele, olhamos longe, observamos as profundezas do universo, conseguimos ver o passado e tentamos entender o presente. O projeto esteve acoplado ao do ônibus espacial e seguiu a tradição de projetos de alto impacto, como o Apollo. Permitiu grandes avanços para a ciência e gerou tecnologias importantes na Terra -até o software utilizado na análise das imagens virou ferramenta para a identificação de células cancerígenas.

O Hubble é fruto e também catalisador de cooperação internacional. Só foi viabilizado quando a Nasa se juntou à Agência Espacial Europeia (ESA) e ao Canadá, que financiaram 20% do projeto. Cientistas de vários países, inclusive do Brasil, utilizam o telescópio, passaram pelo Instituto Hubble e julgam os projetos propostos.

Há muitos exemplos além do Hubble. A análise de 17 megaprojetos de C&T mostra que eles geram benefícios econômicos e expandem as fronteiras do conhecimento, dos negócios e da tecnologia -?originaram, por exemplo, o forno de microondas, o kevlar, os computadores portáteis, os carros autônomos, o sequenciamento genético etc.

É por essas razões que a China valeu-se do radiotelescópio Fast para desenvolver lasers e instrumentos ópticos de alta precisão; que os EUA, o Reino Unido, o Japão, a União Europeia (UE) e a África do Sul, dentre outros, têm estratégias e ‘roadmaps’ para investimento em grandes infraestruturas científicas; que a UE aplicará 100 bilhões de euros em projetos para realizar cinco grandes ‘missões’.

Tais projetos constroem a competitividade futura das economias. Há meses, o governo federal brasileiro anunciou a intenção de lançar um programa de recuperação econômica a partir de investimentos em obras públicas. É fundamental que se invista em infraestrutura, mas limitar-se a isso seria, mais uma vez, perder uma oportunidade para ‘construir futuro’.

Grandes projetos de C&T teriam enorme potencial transformador, e o Brasil tem exemplos de que podemos ‘fazer grande’ -da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) à construção da fonte de luz síncrotron Sirius, do sequenciamento da Xylella fastidiosa ao desenvolvimento da tecnologia de exploração de petróleo em águas profundas.

Grandes projetos requerem escolhas estratégicas. A Índia criou sua agência espacial em 1962 e já lançou centenas de satélites com veículos lá desenvolvidos, enviou missões à Lua e a Marte, desenvolveu tecnologias e capacitou empresas.

O Brasil, em comparação, é a única das dez maiores economias que não tem um programa espacial relevante. Seria esse um caminho? Há opções: podemos escolher terminar com a dengue, a malária ou outras doenças, mapear integralmente o bioma amazônico, criar e implantar em massa soluções elétricas de mobilidade urbana etc.

Qualquer dessas alternativas requereria o desenvolvimento de C&T e a parceria dos setores produtivo e público. As barreiras impostas pelo ambiente institucional e de negócios brasileiros seriam enormes, mas essa também seria uma oportunidade para atacar de frente os limites que impedem que o país faça o que as nações mais avançadas fazem para inovar e criar valor.

Só uma aposta no conhecimento pode construir futuro. Precisamos que qualquer programa de recuperação da economia inclua investimentos em projetos de C&T de grande porte, com visão e ambição global e alto potencial de impacto. Precisamos olhar longe. Podemos fazer grande.

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