A triboeletricidade desafia a ciência

Jornal da Ciência, em 03/08/2012

Fenômenos eletrostáticos desafiam filósofos e cientistas desde que Tales de Mileto, por volta de 600 a.c, esfregou um pedaço de âmbar com lã e constatou que a resina petrificada atraía pedacinhos de palha. Este simples experimento ainda não é bem compreendido e não existem teorias que expliquem efetivamente esse fenômeno, também conhecido como triboeletricidade.  “Em nanotecnologia, o problema é ainda mais grave: quando se reduz a escala, o efeito da carga estática se torna maior que o do peso”, diz Fernando Galembeck, diretor do Laboratório Nacional de Nanotecnologia (LNNano), em Campinas, e coordenador do Instituto Nacional de C,T&I em Materiais Funcionais (Inomat).

A falta de entendimento da triboeletricidade tem tido como consequência negativa inúmeros desastres causados por descargas eletrostáticas – a destruição de um silo de farinha, em Turim, em 1785; o incêndio do dirigível Hindenburgo, em 1937; o acidente com o Veículo Lançador de Satélites (VLS-1 V03), no Maranhão, em 2003 e numerosos outros incêndios e explosões, alguns deles com muitas vítimas.

Apesar da limitação científica, várias tecnologias eletrostáticas são praticadas com sucesso como as de fotocopiadoras e impressoras a laser, a pintura eletrostática, a eletrofiação e a reciclagem de plásticos.

A eletrostática é normalmente considerada como sendo uma disciplina da física, mas os métodos aplicados ao seu estudo não tem produzido boas soluções. Muitos pesquisadores e engenheiros vêm tentando explicar a separação de cargas elétricas que produz a triboeletricidade como resultado da transferência de elétrons, mas isso só foi demonstrado no caso de metais e semicondutores. Nos sistemas vivos, a eletrização é consequência da transferência de íons. No caso dos materiais isolantes, como os plásticos, vidros e cerâmicas, não se sabe quais são as entidades portadoras de cargas nem como essas cargas são transportadas de uma superfície para outra quando esses materiais adquirem carga elétrica estática.

O grupo de pesquisadores do Inomat acabou se envolvendo com o problema da triboletricidade em 1998, quando, estudando a microquímica de polímeros, observaram a distribuição dos componentes numa amostra de látex.  “Utilizando a microscopia de transmissão associada à espectroscopia de perda de energia de elétrons e à microscopia Kelvin, constatamos que partículas de látex, que sempre foram tratadas como elementos neutros, são de fato multipolos elétricos”, lembra Galembeck. Ao longo de mais de dez anos, o grupo analisou cerca de 100 amostras para concluir que, em escalas nanométrica e micrométrica, isolantes sempre apresentam domínios com excesso de cargas positivas e negativas, lado a lado. “A regra não é a eletroneutralidade”, enfatiza o diretor do LNNano.

As pesquisas avançaram com a utilização de wafers de silício recobertos com sílica e tiras de ouro, formando um conjunto de eletrodos interdigitados. “Medimos o comportamento da amostra com diferentes percentuais de umidade e constatamos que a sílica adquire carga negativa quando a umidade se aproxima de 70%”, lembra Galembeck. “Confirmamos que, ao mudar a umidade, muda também o grau de eletrização e concluímos que a atmosfera participa do processo de troca de carga.” A publicação, em 2010, dos resultados que demonstram o fenômeno da higroeletricidade provocou uma grande onda de interesse.

Em 2012, o grupo publicou uma nova descoberta: mapas de carga de amostras de PTFE (politetrafluoroetileno) atritadas contra outras de polietileno mostram regiões macroscópicas com excesso de cargas negativas e positivas formados por resíduos de PTFE negativos e resíduos de polietileno, positivos. A identificação dos portadores de cargas foi feita usando microespectrometrias Raman e infra-vermelha, além de pirólise:  a região positiva da amostra de PTFE apresenta resíduos de carbonização , evidenciando a presença do polietileno. Etanol e outros solventes extraem as cargas depositadas sobre os plásticos e a análise dos extratos mostra que as regiões negativas são formadas por resíduos de PTFE.

Como entender essa separação de carga nos dois materiais? O mecanismo proposto pelos autores considera, em primeiro lugar, que o atrito entre duas superfícies de polímeros provoca a extensão das cadeias de átomos da superfície dos plásticos. Algumas cadeias se rompem formando radicais livres, que são as terminações das cadeias com elétrons desemparelhados. Estes radicais são instáveis e tendem a formar outras substâncias e uma das possibilidades é a transferência de um elétron dos radicais que tem menor afinidade por elétrons (os do polietileno) para os que tem maior afinidade, que são os do PTFE. Dessa forma, os radicais de polietileno transformam-se em íons positivos e os do PTFE em íons negativos. As cargas opostas dos íons tendem a se atrair, mas estão presas a grandes cadeias poliméricas que são sempre imiscíveis, segundo a teoria de Flory, das soluções de polímeros. Portanto, as cargas positivas acumulam-se em uma região da amostra e as negativas em outra região, contígua.

Essa explicação está detalhada no artigo recentemente publicado por Thiago A. L. Burgo, Telma R. D. Ducati, Kelly R. Francisco, Karl J. Clinckspoor, Fernando Galembeck e Sergio E. Galembeck (Triboelectricity: Macroscopic Charge Patterns Formed by Self-Arraying Ions on Polymer Surfaces, Langmuir 2012, 28, p. 7407-7416. DOI: 10.1021/la301228j), cujo conteúdo foi também apresentado na reunião da Eletrostatic Society of America, realizada em junho no Canadá. A apresentação rendeu ao doutorando Thiago de Lima Burgo o segundo prêmio, concedido a trabalho apresentado por estudante. O trabalho foi também apresentado em Sendai, no Japão, na conferência da International Association of Colloid and Interface Scientists em junho, no Fórum da World Academy of Ceramics em Perugia, em julho e será apresentado no Fall Meeting da American Chemical Society, em agosto. Uma outra publicação apresentando novos resultados foi aceita pela Chemistry Letters da Chemical Society of Japan e uma terceira está em preparo.

Os resultados experimentais e o modelo teórico contidos nessa publicação  foram discutidos na edição julho/agosto da revista American Scientist, editada pela sociedade Sigma Xi, num”feature article” intitulado “What Creates Static Electricity”, escrito por Meurig Williams. Este é um pesquisador destacado na área e que trabalhou por um longo período no Xerox Webster Research Center (American Scientist July-August 2012, vol. 100 (4), p.316. DOI: 10.1511/2012.97.316). No artigo ele faz um resumo dos desafios e progressos recentes nas pesquisas sobre triboeletricidade, destacando o trabalho de Burgo e seus colegas do Inomat.

(Ascom do CNPEM/LNNano)

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