G1, em 05/11/2020

 

Desastre com 19 mortos aconteceu no dia 5 de novembro de 2015. Superlaboratório auxiliou em pesquisa que revelou ‘impressão digital’ e mapeou rejeitos distantes 400 km do local do rompimento da barragem.

Por Fernando Evans

Pescador mostra lama na foz do Rio Doce, em novembro de 2015 — Foto: Leonardo Merçon/ Instituto Últimos Refúgios

Pescador mostra lama na foz do Rio Doce, em novembro de 2015 — Foto: Leonardo Merçon/ Instituto Últimos Refúgios

Um estudo realizado com auxílio do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas (SP), permitiu o rastreamento de resíduos provocados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), que completa cinco anos nesta quinta-feira (5). O trabalho dos cientistas revelou a “impressão digital” dos rejeitos e mapeou eles do Rio Doce até a chegada ao Oceano Atlântico, no litoral norte do Espírito Santo, distante 400 km do local da tragédia.

Realizado por pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) com ajuda do CNPEM, o trabalho, recém publicado em uma revista científica, identifica um conjunto de minerais presentes apenas nos resíduos de mineração que eram armazenados na barragem, criando um marcador único para o rastreamento.

Marcos Tadeu Orlando, físico nuclear da UFES, ressalta que a identificação dessa “assinatura”, possível apenas com os recursos tecnológicos do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), trouxe consenso entre os pesquisadores para identificar quais minerais são, de fato, oriundos da barragem.

“Nós não teríamos como descobrir uma diferença entre uma hematita vinda do rejeito e a encontrada no leito do rio. Elas são parecidas, mas não são iguais”, explica.

Gif mostra o antes e depois da foz do Rio Doce, em 2014 e 2015 — Foto: Reprodução/ Google Earth

Gif mostra o antes e depois da foz do Rio Doce, em 2014 e 2015 — Foto: Reprodução/ Google Earth

Por conta de trabalhos anteriores na foz do Rio Doce, desde 2012, os pesquisadores da UFES tinham amostras anteriores à tragédia e podiam compará-las com as coletadas pós-2015.

“Mas até então, na equipe multidisciplinar da universidade, não havia consenso de quais seriam os marcadores para diferenciar os rejeitos. Isso só foi possível com a luz síncrotron, que identificou um conjunto de minerais de ferro, como magnetita, goethita e grennalita, que não tinham em outras amostras, não existia antes”, pontua.

É como se o material passasse a ter um RG, e fosse possível identificá-lo em diferentes amostras. Não à toa, ganhou um nome: foi batizado de IMS (Iron Mineralogical Set).

Mapeamento dos locais de coleta das amostras analisadas na foz do Rio Doce — Foto: Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)

Mapeamento dos locais de coleta das amostras analisadas na foz do Rio Doce — Foto: Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)

Rejeitos ainda em curso

A identificação dessa “impressão digital” permite aos pesquisadores afirmar que sedimentos do rompimento ocorrido em 5 de novembro de 2015 ainda chegam à foz do Rio Doce e ao oceano até hoje. Parte deles se movimenta, por exemplo, durante chuvas que movimentam a lama contaminada.

“As concentrações que detectamos na foz não diminuem, e as concentrações para o norte continuam aumentando”, destaca Orlando.

Análises feitas pelo grupo de pesquisa da UFES apontam que esses minérios estão avançando pelo mar ao norte, em direção ao Parque Nacional de Abrolhos, na Bahia.

Avanço dos estudos

O físico nuclear vê o trabalho como uma etapa inicial para dimensionar os reais impactos da tragédia ambiental. E aposta que a abertura de linhas de pesquisa do superlaboratório Sirius pode ajudar a desvendar alterações que a contaminação por minérios já teria provocado no ecossistema da região.

“Nós só fizemos um pedacinho, o importante ainda está por vir. Queremos saber o quanto isso está impactando na cadeia alimentar, na fauna, na flora e, claro, nas pessoas. As pessoas têm medo de comer peixe do Rio Doce e com razão”, diz Orlando.

Milhões de m³ de lama de rejeito vazaram da Barragem de Fundão em Mariana — Foto: Reprodução/GloboNews

Milhões de m³ de lama de rejeito vazaram da Barragem de Fundão em Mariana — Foto: Reprodução/GloboNews

Uso do superlaboratório Sirius

A expectativa pelo uso do Sirius entre os cientistas é grande. O trabalho que revelou a impressão digital dos rejeitos foi realizado no antigo acelerador de partículas, o UVX, desativado em 2019 para dar lugar ao novo equipamento, de 4ª geração.

“São várias vantagens quando passamos do UVX para o Sirius. A primeira, em termos de fluxo. O Sirius é muito mais brilhante, tem muito mais luz, ordens de grandeza a mais. Isso permite fazer medidas muito mais rápidas, e de amostras muito menos concentradas”, explica Douglas Galante, pesquisador do CNPEM e coordenador do grupo Carnaúba (uma das linhas de luz do laboratório).

Segundo Galante, o Sirius poderia dar uma ideia da dinâmica dessa propagação da contaminação que continua ocorrendo.

“Não é evento estático, a propagação está acontecendo, ela está caminhando para Abrolhos. Mas qual a velocidade de propagação e até onde ela vai chegar no futuro, é o tipo de coisa que a gente só vai saber se for avaliando de tempos em tempos”, defende.

 

Sirius, laboratório de luz síncrotron de 4ª geração, instalado em Campinas (SP) — Foto: Nelson Kon

Sirius, laboratório de luz síncrotron de 4ª geração, instalado em Campinas (SP) — Foto: Nelson Kon

Contaminação do meio ambiente

Na prática, o Sirius permitirá a análise de mais amostras em menos tempo, com maior precisão e sensibilidade. No caso da linha de luz Carnaúba, em fase inicial de testes, a vantagem seria a resolução espacial.

“A Carnaúba tem um gigantesco microscópio de raio-X que permite focalizar um feixe e estudar diferentes regiões com uma espessura mil vezes menor que um fio de cabelo. Isso permite mapear a disposição desses minerais e outros elementos tóxicos dentro das conchas de organismos marinhos, ossos dos peixes, tecidos vegetais das algas”, explica Galante.

O pesquisador defende que o Sirius pode não apenas identificar, mas ajudar a entender o mecanismo de contaminação com o meio ambiente, e como ele interage com matérias orgânicas.

“Isso pode esclarecer que tipo de peixe ou quais partes podemos continuar explorando comercialmente sem risco de contaminação”, completa Galante.

Foz do Rio Doce após chegada dos rejeitos; amostras coletadas no local foram analisadas no CNPEM, em Campinas (SP) — Foto: Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)

Foz do Rio Doce após chegada dos rejeitos; amostras coletadas no local foram analisadas no CNPEM, em Campinas (SP) — Foto: Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

 

O que diz a Renova?

Criada em 2016 para atender aos atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão, a Fundação Renova diz entender a importância de estudos científicos no processo de reparação dos danos causados pela tragédia, mas contesta a informação de que sedimentos possam chegar até Abrolhos (BA) ou que ainda haja concentrações elevadas de rejeitos na foz do Rio Doce e na área costeira.

A Renova destaca que desenvolveu estudo com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) para avaliar o comportamento do rejeito na zona costeira marinha da foz do Rio Doce, consolidando dados de novembro de 2015 até junho de 2019.

E que análises físico-químicas realizadas em amostras do rejeito “não demonstraram características de risco toxicológico à saúde humana”.

Confira a nota na íntegra

“A Fundação Renova entende a importância de estudos científicos para o processo de reparação e apoia diversas pesquisas na área ambiental nesse sentido. A Fundação informa que desenvolveu estudo junto à Fundação COPPETEC (UFRJ), sob a coordenação do professor e pesquisador Paulo Cesar Colonna Rosman da Área de Engenharia Costeira e Oceanográfica da COPPE/Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tal estudo teve por objetivo avaliar de maneira criteriosa, com auxílio de modelos computacionais, o comportamento do rejeito na zona costeira marinha da foz do rio Doce, em consequência do rompimento da barragem de Fundão. O estudo consolidou de maneira ampla os dados disponíveis que abrangeram o período de novembro de 2015 até junho de 2019.

Dentre os principais resultados, o estudo mostrou que a contribuição e a extensão da pluma de rejeito no mar foram temporárias, ocorrendo predominantemente para sul da foz do Rio Doce. A ocorrência de concentrações de rejeito com potencial de causar alterações significativas na qualidade da água ficaram restritas a poucos quilômetros da embocadura do rio. Também se observou que a contribuição de rejeito foi significativa apenas até meados de março de 2016. A partir de final de março de 2016, as concentrações de sedimentos registradas correspondem ao comportamento natural típico desse tipo de estuário, refletindo os períodos de estiagem e de chuvas que ocorrem sazonalmente.

O estudo também demonstra de forma consistente que a dispersão do rejeito ocorreu predominantemente para o sentido sul da foz do rio Doce reforçando a evidência de que não houve condicionantes físicas suficientes para carrear quantidades significativas de rejeito persistentemente para o norte, e muito menos até Abrolhos/BA, que fica cerca de 220 km para o norte da foz.

É importante esclarecer ainda que todas as análises físico-químicas realizadas a partir de amostras do rejeito da barragem de Fundão não demonstraram características de risco toxicológico à saúde humana.

A Fundação Renova destaca que os monitoramentos sistemáticos de qualidade de água, sedimentos e de biodiversidade têm apontado para a progressiva melhora das condições ambientais após o rompimento. Diversos estudos científicos evidenciam, inclusive, que a presença de metais, como o ferro, alumínio e manganês, já é registrada em níveis elevados historicamente na região, previamente ao rompimento”.

O post 5 anos da tragédia de Mariana: estudo permite rastrear resíduos de minérios no Rio Doce e no oceano apareceu primeiro em CNPEM.